Início Além do que se vê Lucid Dream — entre vidas passadas e sonhos lúcidos

Lucid Dream — entre vidas passadas e sonhos lúcidos

3891
2

Juro que estava sentindo muitas saudades de escrever, e porque não, de escrever sobre doramas, já que são as resenhas que mais me trazem retorno e feedbacks, no Medium e no AnimeSun. Sinto que o público de doramas asiáticos são bem carentes de produtores de conteúdo falando sobre esse gênero de TV. Senti isso na pele quando fui pesquisar para o texto de Oh My Venus (o mais lido), achava pouquíssimo material sobre a Coreia do Sul e suas produções. Mas, felizmente, notei recentemente uma atenção maior e mais gente falando para esse segmento. Até que enfim, não é mesmo?

O drama que vou falar dessa vez, Lucid Dream (2015) — ou Snow Lotus Flower — traz um ótimo combo para quem ainda não entrou nesse fandom cada dia maior. Não é por ser o melhor drama sul-coreano que já vi na vida, mas pela facilidade que você vai ter para assistir, não vai ter desculpa, porque:

1) Ele está no Netflix! Foi lá que assisti. Está também no DramaFever, no formato original o qual foi exibido na TV, um especial de 160 minutos dividido em 2 episódios. Chega de vagar sem rumo nos catálogos, foca no Lucid Dream. Com ele, superei meu trauma de doramas no Netflix causado por Noble, My Love e Atelier, duas decepções como eu explico aqui.

2) Ele é curtinho! Tem somente 8 episódios de 20 minutos. Você pode maratonar em um dia, uma tarde, uma noite (foi o que fiz). A maioria dos doramas, ao menos os mais populares, costumam ter média de até 20 episódios de 1 hora cada! Para quem vai ver esse tipo de série pela primeira vez, pode ser meio cansativo começar por esses, apesar de serem os melhores.

3) Lucid Dream tem um enredo mais adulto, mesmo com a parte que é pura fantasia e fala de vidas passadas. Foi a primeira vez que vi um beijo tão caloroso em um k-drama, sério! Asiáticos são muito discretos, o que para brasileiros costuma parecer frieza, mas é só o comportamento deles representados na tela, logo não vemos muitos “amassos calientes”. Então, se você acha que é coisa de adolescente e é uma jovem adulta como eu (com 25 anos vendo séries coreanas sem medo de ser feliz) veja Lucid Dream, sem nóia, sem caô.

Essas foram as razões simples e diretas para você entrar no mundo do doramas e porque Lucid Dream (sonho lúcido, em português) é uma boa opção nessa missão. Agora vou contar o que achei e como de costume, vou começar pela sinopse:

“Atormentados por sonhos lúcidos, Lee Soo Hyun (Ji Jin Hee) e Han Yun Hee (Lee Ji Ah) descobrem uma conexão entre a vida passada deles, um romance impossível de 1000 anos atrás. À medida que cada sonho parece mais real, Soo Hyun e Yun Hee chegam mais próximos da descoberta de um amor além do tempo e os conflitos que os levaram a separação. Mas será que o passado se repetirá de novo e irá separá-los mais uma vez?”

Trailer:

https://youtu.be/FVtdVnjd2qw

Agora que entendem o título e sabem quem estrela esse k-drama, vou destacar alguns pontos interessantes (com spoilers!). Então, se não assistiu ainda, corre lá e volta para ler o restante do texto, é só salvar nos favoritos!

Logo no primeiro episódio vemos nossa protagonista vestida de homem para participar de um concurso de desenho para pais e filhos (as) com sua sobrinha, que não tem pai, já que sua mãe e a irmã mais velha de Han Yun-Hee é viúva. A confusão que vai aproximar os protagonistas se inicia quando Yun-Hee que é professora de artes e desenha muito bem, vence o concurso, com um desenho que remete ao sonho (lúcido) que ambos sonharam, ela e Lee Soo Hyun, CEO da empresa de games onde sua irmã Ganghui Han (Kim Min-Hee) trabalha como gerente na cafeteria. Uma ventania faz com que o desenho chegue no apartamento do CEO que mora no terraço de sua própria empresa.

Yun-Hee tomboy

Soo Hyun não fica só perturbado pelos sonhos e a semelhança com o desenho de Yun-Hee, ele decide contratar o “pai” de Jeongwon Han para trabalhar em sua empresa, como designer do novo jogo que será inspirado nada menos que no sonho que os dois estão tendo. Como Yun-Hee resolve a situação? Depois de muita chantagem emocional da irmã e sobrinha pelo valor do salário, ela topa ser o “tio” — corta o cabelo bem curto e se veste de homem (ou o que consideramos masculino) — aceitando o emprego enquanto finge ser homem. O que, em paralelo, também acontece no passado nos sonhos de ambos, quando o cara com uma espada que salva Soo Hyun era na verdade uma mulher, muito forte e boa de briga.

Chook Young Dae e Ma Moon-Jae no período Joseon sul-coreano

Embora a Yun-Hee/Chook Young Dae do passado só comece a se aproximar de Soo Hyun\Young San Baek por um interesse amoroso que não é ele, e sim o melhor amigo dele, Ma Moon-Jae, e para isso, se veste de homem vai à escola onde os dois rapazes estudam. Só para enfatizar, no período Joseon sul-coreano, mulheres não podiam estudar e muito menos aprender artes marciais. Os homens tinham cabelos compridos que ficavam presos em chapéis, então naquele tempo a moça não precisava cortar o cabelo. Nesse detalhe, vemos como a época e tendências de cada época influenciam no que é considerado masculino e feminino.

Quando descobri que Lucid Dream foi roteirizado por uma mulher, a roteirista Min Ji-Eun, a mesma de sucessos recentes como Cinderella and the Four Knights (2016), tudo fez sentido. Ainda não vi outros roteiros de Min Ji-Eun, mas a gente sente a diferença do que é ter como roteirista uma mulher e como ela retrata a personagem feminina principal e secundárias em Lucid Dream.

Vemos mulheres determinadas e independentes, sendo a protagonista o destaque exemplificando isso. Temos mulheres viúvas que conseguem viver sem o marido e ajudando umas às outras. Metade ou a maioria das pessoas trabalhando na empresa de jogos são mulheres.

Uma das minhas cenas preferidas é a que, enquanto Yun-Hee trabalha na aparência dos personagens do jogo, uma de suas colegas de trabalho (que acredita que ela é homem e até dá em cima) comenta que o personagem principal do jogo é muito magro, que deveria ser mais musculoso por ser homem num jogo de ação. “Sr. Han”, ou nossa protagonista, havia afirmado em uma reunião que a história era fraca para um jogo, mas defende que não é porque o personagem principal se apaixona por um homem que o salva, e reforça: “Pode-se gostar de alguém sem ter nada a ver com gênero”. Não vou mentir — Yun-Hee me conquistou depois dessa fala — caí de amores pela protagonista e o roteiro da série ganhou mais minha atenção.

Esse diálogo ❤ (clique na imagem para ver em tamanho grande)

Gosto muito também do recurso no roteiro da troca em que Ma Moon-Jae reencarna como mulher, Choi Yoo-Ra (Seo Ji-Hye), e continua tendo o comportamento possessivo e agressivo para resolver sua situação amorosa com Yun-Hee, como se, ironicamente, afirmassem que personalidade e temperando independem do gênero e aquele papinho que ser histérica é coisa de mulher, não cola.

A construção dos personagens masculinos também reforça o que vemos na representação feminina.

O CEO Soo-Hyun é julgado por ser “doido e mulherengo” e ter largado uma empresa de eletrônicos para abrir uma de jogos. Pelo menos, não só mulheres são julgadas por mau comportamento por lá, embora observemos algo recorrente em produtos asiáticos: sua reputação importa, e muito, independente de gênero. Afinal, asiáticos são de um todo exigentes. E o comentário maldoso vem da boca de um homem, Taeju, um personagem masculino colocado em função da protagonista (acho que o jogo virou não é mesmo?) e que não a julga porque ela está vestida de homem, só escuta seus problemas do trabalho, escutando atenciosamente como amigo, apesar de querer ser algo mais que isso.

Porém, mesmo com todos esses detalhes me agradando, duas questões me incomodam.

A primeira, o “pseudo-homossexualismo” (acabei de inventar o termo, não sei se existe) que encontramos em alguns doramas, explorando o romance e sexualidade com uma tensão que consiste no interesse pela mulher vestida de homem, mas nunca um casal gay de fato. Eu ainda não vi e sou curiosa para encontrar dramas asiáticos com temática LGBTQ+ de verdade. Soo-Hyun chega a confirmar que se apaixonou pela pessoa de seus sonhos, que é homem, mas tudo bem jogar assim se ele vai descobrir depois que ela era uma mulher fazendo cross dressing¹, né?

O segundo ponto é essa idealização do amor romântico que dura para sempre, através dos tempos e do tipo amor à primeira vista. Seja por vidas passadas ou não, a cultura pop, por diferentes meios, continua colocando na nossa cabeça a ideia de um amor eterno e indestrutível, quando na realidade não é bem assim que funciona. Os recursos para sustentar essa idealização em Lucid Dream tem auxílio de magia e fantasia, aqui na reencarnação dos personagens. Tudo muito bonito de se imaginar em teoria, porém, frustrante na prática.

Yun-Hee e sua irmã Ganghui Han

Estou assistindo agora A lenda do mar azul (Legend of the blue sea) e Goblin (!!!), este primeiro que tem um enredo bem semelhante a Lucid Dream no que se refere a reencarnação e sonhos. Os coreanos gostam bastante desses temas, e tenho me perguntado se faz parte da cultura e religiões deles, um detalhe a ser analisado mais a fundo. Se algum leitor souber mais a respeito e quiser comentar, agradeço!

Para finalizar, enfatizo outra vantagem de Lucid Dream ser um mini-drama: o fato de ser rápido impede que ele tenha absurdos melodramáticos recorrentes em séries coreanas. Um problema comum em doramas mais longos é ir muito bem nos primeiros episódios e se perder depois, próximo ao fim, caindo em clichês ou exageros para justificar acontecimentos. O que pode frustrar o espectador e já me fez abandonar alguns dramas.

Curto, Lucid Dream não deixa espaço para devaneios narrativos e tem um enredo coeso no que se propõe, mesmo sendo uma fantasia idealizada sobre um amor mais forte que o tempo e a morte. Contudo, o que é totalmente possível e dentro da realidade ao assisti-lo é nos inspirarmos a valorizar o que temos aqui e agora, nessa vida, porque ao contrário dos protagonistas desse drama, não sabemos ainda se vamos ter outra chance.


Glossário:

1. Cross-dressing: termo que se refere a quem veste roupas associadas ao sexo oposto, sem necessariamente ser homossexual ou trans.


Publicado originalmente em: https://medium.com/@kekoutz/