Início Além do que se vê 30 anos de O Castelo no Céu, clássico do estúdio Ghibli

30 anos de O Castelo no Céu, clássico do estúdio Ghibli

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Em agosto, o primeiro filme a levar oficialmente o selo Ghibli (de qualidade) completa 30 anos. Lançado em 1986, ano seguinte a fundação do estúdio de animação japonês em 1985, Laputa: Castle in the sky ou Tenkû no shiro Rapyuta, foi dirigido por ninguém menos que Hayao Miyazaki, mestre da animação, considerado o maior cineasta vivo no Japão. Isso mesmo, cineasta, porque ao contrário da percepção ocidental a qual estamos acostumados, que separa desenhos animados do anime, e filmes da animação, para os amigos orientais animação é sinônimo de cinema. E aqui, dos bons. A história sobre um lendário castelo flutuante pode ser considerada um marco não só para o Ghibli, mas também para o cinema e o gênero de ficção científica.

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Sheeta e Pazu encontram Laputa

Protagonizado por Sheeta e Pazu, esses dois jovens órfãos não poderiam se conhecer de maneira mais inusitada: o aprendiz de engenheiro Pazu segura Sheeta quando a menina caía dos céus, só que flutuando suavemente, o que parece acontecer graças a pedra mágica que ela carrega. Momento este logo após acompanharmos a eletrizante abertura do filme, uma sequência de pura ação, que ocorre onde Miyazaki mais gosta de estar – nos céus. Sheeta caiu de um dirigível enquanto fugia de piratas e de um homem que se diz seu tutor. De cara, somos confrontados com uma sucessão de acontecimentos que não entendemos, o que nos deixa ainda mais ansiosos por respostas, que vamos ter ao longo de quase duas horas de filme.

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Pazu resgata Sheeta quando ela cai do céu, flutuando com auxílio da Levistone

Apesar de não ser tão conhecido quanto outros filmes Ghibli – como A Viagem de Chihiro, ganhador do Oscar, ou Meu Vizinho Totoro, Princesa Mononoke e Castelo Animado – Castelo no Céu consolidaria alguns dos principais elementos da filmografia de Hayao Miyazaki, já apresentados no filme responsável pela fundação do estúdio, Nausicaa do Vale do Vento.

Ghibli e o estilo Miyazaki de animação

Pontuando alguns dos ingredientes Ghibli, primeiramente e antes de tudo: uma protagonista feminina, forte e independente, subvertendo estereótipos e quaisquer limitações que pudessem ser associadas a gênero. Miyazaki prefere heroínas a heróis. Mas, todas as suas protagonistas são tão humanas e únicas, que trazem cada uma sua própria personalidade. Então, diferente de sua antecessora Nausicaa, uma carismática princesa de ação, Sheeta é mais ponderada e tranquila, além de prestativa e introvertida. Porém, é tão imprevisível quanto qualquer pessoa poderia ser. Seu comportamento oscila entre momentos de pura atitude e outros de conformismo.

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A protagonista Sheeta. Ou princesa Lusheeta Toel Ul Laputa.

Em segundo, a paixão de Miyazaki por aviação, refletido aqui em muitos planos aéreos e aeronaves. Além do fascínio por castelos transportado para um que paira no ar. Em terceiro, a mensagem ecológica e o debate sobre a preservação do meio ambiente, um tema recorrente na obra do diretor, que teve uma abordagem mais intensa em Nausicaa, e é colocado de maneira mais sutil em Laputa. E por último e jamais menos importante, Castelo no Céu traz um olhar sobre a guerra e a visão crítica de seu diretor, que também observa a humanidade de forma fragmentada, através de cada indivíduo, suas ações e motivações, e como estão relacionadas a ganância, egoísmo, avareza e desejo de poder. Não por coincidência, Laputa tem Muska, personagem que podemos considerar o único vilão de fato em toda a filmografia de Miyazaki.

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Os protagonistas Sheeta e Pazu

Muska é o único dissonante, já que os demais personagens trazem consigo marcas do estilo Ghibli. Como um protagonista masculino (Pazu <3) que não é o salvador da “donzela em perigo”, é um amigo e companheiro que luta ao lado de sua heroína, ambos se apoiando e ajudando reciprocamente. E coadjuvantes antagonistas, aqui os Piratas liderados pela imponente senhora Dola, que se tornam aliados e amigos dos protagonistas, e os quais nos apegamos tanto quanto. Porque nas histórias de Miyazaki cada um tem seu espaço e razões bem definidas. Não existe bem ou mal – há diferentes perspectivas de uma mesma situação.

Inspirações, steampunk e recorde no Twitter

No anime Dragon Ball vemos a figura do Kami-sama, o Deus da terra e do céu, que vive em seu castelo no céu. Mas essa entidade não foi criação de Akira Toriyama, trata-se de uma entidade do Xintoísmo, religião original do Japão. Entretanto, não foi na cultura japonesa que Hayao Miyazaki se baseou para criar a história de Laputa. Sua inspiração veio de uma passagem do livro As Viagens de Gulliver (1735), um romance satírico do escritor irlandês Jonathan Swift. No livro, Gulliver conhece várias ilhas com culturas bem peculiares. Uma dessas ilhas é chamada Laputa, e é formada por cientistas e possui uma tecnologia avançada. Em espanhol, separando as sílabas, lê-se “a puta”. Reza a lenda, questionado, o diretor Ghibli disse que não dominava o espanhol, caso contrário não teria colocado o nome no título do filme. O título do filme foi modificado para distribuição em outros países, apesar de Laputa não ter nenhuma conotação específica na língua japonesa. Em 2003, o título do filme foi encurtado de Laputa: Castle in the Sky para Castle in the Sky em vários países, incluindo Estados Unidos, México e Espanha.

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Laputa, o tal castelo no céu

O castelo medieval da cidade flutuante Laputa parece ter sido influenciado pela pintura A Torre de Babel, criada em 1563 por Pieter Brueghel, o Velho. A ligação também é simbólica. De acordo com a narrativa em Gênesis capítulo 11 da Bíblia, a Torre de Babel era uma torre construída para alcançar os céus por uma humanidade unida.

Outra possível fonte de inspiração foram os livros do escritor francês Júlio Verne, considerado precursor do Steampunk, um subgênero de ficção científica que viria a se popularizar somente muitas décadas após a publicação de livros de Verne como Viagem ao Centro da Terra, Volta ao mundo em 80 dias e Da terra à Lua. Castelo no Céu esteve à espreita dos anos que consolidariam o steampunk, entre final dos anos 80 e começo dos anos 1990. Semelhante ao cyberpunk, o steampunk se diferencia no fato que toda sua imaginária tecnologia mecânica seria movida à vapor. Vários autores começaram a escrever ficção científica futurista nesse período, embora a época fosse a que eles viviam (século XIX). O gênero possui uma estética própria inspirada na era vitoriana, período britânico do governo da Rainha Vitória (1837-1901), quando o vapor era o principal meio de produção, associado com a utilização de máquinas e objetos feitos de madeira e ferro.

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Castelo no céu é um dos filmes Ghibli com mais sequências aéreas

São obras ambientadas no passado, no qual os paradigmas tecnológicos modernos ocorreram mais cedo do que na história oficial (ou num universo similar), mas foram obtidos por meio da ciência já disponível naquela época. Suas histórias costumam conter elementos como sociedades secretas e teorias conspiratórias – ambos presentes em O Castelo no Céu.

Parte da arquitetura e personagens vistos no filme foram inspirados em uma cidade mineira galesa. Miyazaki visitou pela primeira vez País de Gales (Reino Unido) em 1984 e testemunhou uma greve de mineiros. Segundo ele, o longa reflete sua experiência de Gales: “Eu estava no País de Gales, logo após a greve dos mineiros e realmente admirava a forma como os sindicatos mineiros lutaram até o fim [..]. Eu quis refletir a força dessas comunidades no meu filme.” Miyazaki disse ao The Guardian: “Eu admirava aqueles homens, eu admirava a maneira como eles lutaram para salvar seu modo de vida, assim como os mineiros de carvão no Japão fizeram. Muitas pessoas da minha geração viam os mineiros como um símbolo, uma raça em extinção da luta homens. Agora eles se foram.”, conta. O jeito meio bruto e divertido desses mineiros seria personificado posteriormente nos homens da cidade onde o protagonista Pazu vive.

Uma curiosidade recente sobre o filme e que mostra o respeito e admiração dos japoneses por Miyazaki ocorreu durante uma reprise do longa na TV nipônica. Tenkû no shiro Rapyuta foi responsável por um pico mundial no Twitter em 2 de agosto de 2013 (data oficial de lançamento do filme em 1986). Os fãs japoneses twittaram todos ao mesmo tempo a palavra “balse” (“barusu”) no exato momento em que ela foi dita na animação. O próprio Twitter informou que havia registrado um novo recorde para o número de tweets em um único segundo. O incidente ficou conhecido como “Festival Balse” (“barusu matsuri”), com pico de 143,199 os tweets em um segundo, destruindo o recorde anterior de 33.388. E essa foi só a segunda vez. Em 2011, outra exibição de Castle in the Sky superou o então recorde de 8.868 tweets, alguns momentos após Beyoncé ter anunciado que estava grávida, no MTV Video Music Awards.

Castelo no Céu
Pazu e Sheeta juntos a um dos robôs que cuidam da abandonada cidade flutuante

A década de 1980 foi um período rico para animes de ficção científica, um bom exemplo seria o clássico Akira, de 1988 e dirigido por Katsuhiro Ôtomo. Como fruto eficiente do gênero, Miyazaki não deixaria a desejar com Castelo no Céu, onde ele mais utilizou toda a sua coleção de referências, vindas de diversas culturas e religiões diferentes. Mesmo sendo animação japonesa, poucos filmes Ghibli tem como cenário o Japão. Curiosamente, alguns de seus longas mais visualmente orientais são dois muito populares: Princesa Mononoke e A Viagem de Chihiro. O que mostra uma adesão do público ao que de mais nipônico Hayao Miyazaki pode oferecer, apesar de sua obra tão mista de fontes.

O Castelo no Céu acabaria se tornando um filme cult, dos menos conhecidos do estúdio, mesmo sendo oficialmente seu primeiro. Voltado ao público infantil, ele é mais leve que Nausicaa do Vale do Vento, tendo um roteiro mais simples e uma questão mais fácil a ser resolvida. Ainda assim, Miyazaki ousa e não subestima seu público-alvo, trazendo histórias complexas, porém poderosas, numa filmografia que oscila entre o sombrio e o resplandecente, o pessimismo sobre a humanidade e o otimismo pela mesma, este último personificado através das crianças. Crianças estas que talvez nem tenham noção do carinho com que a equipe Ghibli cuidou de cada filme, em anos de produção, fazendo animação do jeito tradicional, a mão, quadro a quadro, e com a dedicação que tanto o mundo real quanto o imaginário têm direito.

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Texto publicado em: medium.com/@kekoutz